Diagnóstico da Cigarra, 2022
Centro Cultural dos Correios
São Paulo - SP
“E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia”
Manoel de Barros, Árvore
Das possibilidades visuais do som, das perspectivas sonoras da imagem
As sereias. Deixem que eu narre duas histórias sobre o canto das cigarras. No verão, havia uma formiga que trabalhava duramente para se preparar para o inverno, enquanto uma cigarra só queria saber de passear pela floresta e cantar, despreocupada com a estação vindoura. Era de se imaginar que, com a chegada do frio, uma tinha alimento para sobreviver, enquanto a outra, apesar dos avisos, padecia. A suposta lição de moral parece evidente: recompensa-se o esforço árduo em detrimento da diversão e do prazer, em nome do porvir. Contudo, talvez seja mais interessante (e justo e genuíno) compreender a natureza de cada animal, apreciar o valor inestimável do canto (que também pode ser trabalho) e lembrar que a beleza (porque não, a arte) é tão imprescindível no presente quanto as reservas para o futuro.
A orelha. A outra história é um relato não-ficcional sobre uma menina do interior de Minas Gerais. Aos nove anos de idade, Rosilene Fontes percebeu que só era capaz de ouvir o canto das cigarras à noite quando se deitava sobre seu lado esquerdo. Ao virar-se na cama sobre o lado direito, apenas silêncio. A cena, recontada aos adultos, foi atribuída à sua imaginação fértil, à invenção, ao apelo por atenção, o que acabou deixando esta espécie de auto-diagnóstico poético latente, sendo confirmado clinicamente só no início de sua vida adulta. Daquele momento em diante, os monitoramentos da audição se tornaram recorrentes e, com eles, veio a identificação de uma diminuição gradual – e irreversível – na escuta do outro ouvido.
Música. Rosilene Fontes é uma artista da observação cuidadosa, de reparo acurado para aquilo que passa despercebido. Seu processo de trabalho acontece em um campo híbrido – meio científico, meio inventivo –, onde ela recombina memórias, ficções e elementos que coleta. Suas investigações exploram as possibilidades semânticas da articulação e mistura das esferas biográficas (reiteradamente balizada pela perda da audição), fictícias, geográficas, biológicas e históricas, em suportes dos mais variados. No emprego da linguagem, principalmente por meio da escrita, é possível identificar uma pesquisa extensa sobre jogos de palavras, camadas de significado e semiótica, além de um talento ímpar para a contação de histórias. Nos desenhos, por sua vez, vemos um traço extremamente delicado, cuja forma mais realista tensiona as figuras incrivelmente fantasiosas. Por fim seu lado de colecionadora se sobressai em seus objetos e instalações, realizados a partir do acúmulo quase obsessivo de relíquias, cartões postais e fotografias, quinquilharias sortidas, insetos mortos e outras matérias orgânicas –encontradas, compradas, presenteadas e herdadas.
Sala de concerto. Os diversos trabalhos apresentados na exposição “Diagnóstico da Cigarra” partem deste universo múltiplo engendrado pela artista. Entre os desenhos, um díptico representa a fusão de autorretratos com ilustrações de cigarras, em quimeras de canto ensurdecedor, enquanto um pequeno esboço combina a imagem de Fontes enquanto criança com as asas de libélula coladas sobre o papel. Há também uma grande instalação que reúne um conjunto expressivo de pequenos bichos, instrumentos, imagens impressas e pedras, apresentados em dispositivos e redomas que evocam um laboratório surreal, ou um museu de história não-natural. A mais invisível e, simultaneamente, mais ubíqua obra do projeto é uma gravação do canto das cigarras que invade o espaço de tempos em tempos, cuja altura começa suportável ao ouvido médio e gradativamente diminui na escala dos decibéis, até desaparecer – é como um convite ao nosso próprio auto-diagnóstico, nos despertando à escuta atenta e desafiando a primazia visual da arte. Talvez a mais poética peça do percurso seja a segunda edição do livro “Ulisses”, de James Joyce (com tradução histórica de Antônio Houaiss), aberto em um capítulo específico para ser folheado pelos visitantes. O bloco de páginas anteriores é cravejado por uma pequena concha marinha, permanecendo inacessível; nas folhas seguintes, algumas frases são veladas com tinta branca, destacando as aliterações, onomatopéias e sentenças sonoras – como se dessa leitura só se pudesse mesmo apreender os barulhos, ruídos e melodias. O livro pertencia ao pai da artista, assinado e datado por ele exatos 54 anos antes da abertura da mostra. Ao encontrá-lo em sua antiga casa, Fontes abriu o calhamaço espontaneamente na página 290, a primeira do episódio 11 – no índice remissivo, é intitulado “As Sereias”; a Cena chama-se “Sala de Concerto”; o Órgão metafórico é “Orelha”; e a Ciência/Arte correlata é “Música”.
Post scriptum: depois da leitura deste texto, Rosilene Fontes me contou que seu pai tinha uma biblioteca enorme e que o último livro que ele comprou antes de morrer foi do poeta Manuel de Barros.
Julia Lima
Fevereiro de 2022









