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Diagnóstico da Cigarra, 2022

Instituto Marco do Valle

Campinas - SP

O diagnóstico da cigarra, a reinvenção da escuta e os ruídos do insondável

 

            Rosilene Fontes é marcada pela singularidade de uma escuta particular. Sozinha, percebeu algo que a diferenciava na forma de ouvir e perceber o mundo. Ainda criança, ao escutar uma cigarra virou a cabeça no travesseiro e se deixou ser invadida por aquele som. Anos mais tarde, a perda parcial detectada na relação com a cigarra foi diagnosticada como uma perda irreversível da audição.

 

            A exposição “Diagnóstico da Cigarra” resgata esse acontecimento, em um conjunto de trabalhos que, a partir de experiências íntimas misturadas às de outras pessoas com perdas auditivas, tocam o real do silêncio. O diagnóstico é reinventado pela possibilidade de fabulação: desenhos, pinturas, colagens, livros, fotografias e documentos de acervo pessoal criam narrativas que ganham novas camadas de sentido, a partir de uma fina pesquisa e catalogação de imagens.

 

            O confinamento imposto pela pandemia fez a perda auditiva retornar como uma questão. A partir disso, a artista criou um pequeno “laboratório do silêncio”, se apropriou de imagens e objetos e os transformou em uma invenção tão suave e delicada quanto trêmula: matéria da perplexidade de um corpo atravessado pelo desamparo e pela força pulsional, criação de um mundo que vai se revelando entre a ciência e a poesia. Em exames audiométricos, na coleta de sutilezas cotidianas e no exercício de se retratar, Rosilene Fontes refaz sua biografia.

 

            O que antes era escamoteado agora é invenção: interior e exterior, natureza e cultura, tudo familiarmente estranho e estranhamente familiar em uma coleção que aponta para as sutilezas do som e da memória. A surdez – antes dissimulada e velada – é incorporada ao trabalho a partir da combinação de partes de insetos diversos que formam novos seres, relacionando paisagens, elementos da natureza e da casa. O trabalho é inundado por uma “inquietante estranheza” – a mesma ambiguidade analisada por Freud no artigo “O estranho”: a artista coleta insetos, casulos, conchas, areia e pedras, objetos que convivem em suas diferenças e invadem sua própria constituição de sujeito.

 

            Grilos, cigarras, abelhas, gafanhotos, mosquitos parecem dar notícias do insondável, letras miúdas revelam elementos até então ignorados. Em objetos e instalações, pequenos relicários feitos de cartões postais e fotografias, insetos mortos e outras matérias orgânicas, asas de libélula e um conjunto expressivo de instrumentos, imagens impressas e pedras criam um laboratório fantástico que revela o nascimento de um sujeito que nasce da relação com a voz do Outro mas, sobretudo, revelam a irrupção da singularidade ao se inscrever na dinâmica da invocação. Rosilene Fontes reescreve seu mundo a partir de uma maneira de escutar e, assim, se inscreve na corrida desejante.

 

            O psicanalista Jacques Lacan assinala que o circuito da pulsão invocante se dá entre um “ser chamado”, um “se fazer chamar”. A artista propõe uma subversão, se apropriando de palavras malditas para bem-dizer sua condição, modificando seu lugar, criando outra geografia, uma cartografia outra evocada também pelo canto gravado de cigarras que invade o espaço de tempos em tempos, em uma altura perfeitamente audível que gradativamente diminui na escala dos decibéis, até desaparecer. Nessa torção, a artista invoca o outro a escutar o silêncio.

 

            Presença e ausência, dentro e fora, ruído e silêncio. Fazer-se outra, fazer-se muitas, bicho e gente, escutar o irredutível de um corpo falante, abrigar a complexidade do inconsciente: é nesse liame que se inscreve o trabalho de Rosilene Fontes. Em seu “laboratório do silêncio” somos convocados a ouvir mais além, a escutar o impossível que habita a linguagem. De uma pequena concha marinha ou de frases veladas com tinta branca, entre barulhos e melodias conseguimos entrever a fresta para uma alteridade, a brecha para a invenção.

 

            No gesto de dar destino ao que não se pode ouvir por completo, a artista se coloca à deriva à maneira proposta por Jean-Luc Nancy, para quem a escuta é ao mesmo tempo um título, um endereçamento e uma dedicatória. Em um belíssimo ensaio, o filósofo francês recoloca a questão da escuta a partir da amplidão do desdobramento sonoro onde se modula uma voz, onde ela vibra, no singular de um grito, de um apelo ou de um canto. E finaliza: “é preciso compreender o que soa de uma garganta humana sem ser linguagem, o que sai de uma goela animal ou de um instrumento qualquer que ele seja, até mesmo o vento nas ramagens: o murmúrio ao qual damos ou prestamos ouvidos”.

            “Diagnóstico da Cigarra” apresenta uma possibilidade de fuga, de ruptura diante do silêncio do abismo, uma nova dialética das pulsões. Ao destacar algo da surdez a artista se faz falante, personagem ativa da história que sustenta nessa reviravolta a própria voz, com timbre próprio e uma inesperada escuta do insondável.

 

                                                                                                                                       Bianca Coutinho Dias

                                                         

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